Ligeti, Beethoven e o Cancro da Mama

Unknown

Têm circulado na internet várias notícias, vídeos e referências que afirmam que “foi descoberto que ouvir a Sinfonia n.º 5 de Beethoven (1770-1827) pode diminuir ou curar células cancerígenas da mama”. Como não partilho nada que não venha de fontes minimamente fidedignas, que geralmente não citam fontes ou citam mal, ainda não tinha tido tempo para explorar o assunto quando esbarrei num vídeo simplesmente hilariante que conta a história da senhoria que quer cobrar a renda ao compositor e, não conseguindo, bate insistentemente à porta (a ver o vídeo aqui : https://unicidade.org/2016/05/14/uinta-sinfonia-no-tratamento-de-cancer/) – dando a Beethoven a ideia do tema do 1º andamento da Sinfonia n.º 5 (1807-08), ao mesmo tempo que diz qual é a fonte exacta não dessa história mas da notícia da potencial cura. Quanto à outra, terei que a explorar um dia mais a fundo, porque nunca vi tal citado em lado nenhum em nenhuma fonte minimamente séria, mas como também nunca li tudo de Beethoven ou sobre Beethoven, deixo o benefício da dúvida para estudos futuros.

Mas é sempre fundamental ir ler as notícias a partir das fontes. Portanto, lá fui pesquisar e fui de facto parar ao Portal do Programa de Oncobiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro, até porque fiquei curiosa com uma coisa que, para variar, ninguém esclareceu, nem a própria notícia do portal em causa: o que cura as células cancerígenas é a audição na íntegra de toda a sinfonia de Beethoven (quatro andamentos); apenas um ou dois andamentos ou apenas excertos, de um ou mais? A falta de clareza é um mau trabalho de comunicação entre a instituição e o público.

Enfim, ao ler-se a notícia, verifica-se que a experiência começou com Mozart (1756-1791) com cuja música não se obtiveram resultados nenhuns mas que, para além dos resultados com a Sinfonia n.º 5 de Beethoven, também se obtiveram resultados promissores no combate às células cancerígenas da mama com a peça  Atmosphères (1961), de um compositor húngaro chamado Gyorgy Ligeti (1923-2006) que trabalhou sobretudo durante a segunda metade do século XX. O texto da notícia pode ler-se aqui – http://www.oncobiologia.bioqmed.ufrj.br/noticias_onconews_detalhes.asp?id=417 e cito um excerto: “Beethoven é extremamente agradável de se ouvir, então não seria de forma alguma um problema para os pacientes portadores da doença. As composições de Ligeti, diferentemente, não são harmoniosas e causam uma maior tensão. Mas como ambas parecem agir apenas sobre as células cancerosas, estamos vibrando”, comemora a professora.” Também acho que seja de comemorar, porém duvido que ouvir Ligeti seja pior ou mais tenso que ir a uma sessão de quimioterapia ou radioterapia, mas enfim.

No entanto, discordo por completo da ideia de que Beethoven seja sempre extremamente agradável de ouvir. Apesar de gostar bastante, é raro pôr-me a ouvir Beethoven, que tem uma música que é muitas vezes intrinsecamente tensa a vários níveis e eu não estou, pelo menos actualmente, nesse registo. Para além disso, foi uma personagem complexa, de feitio difícil, com crises de violência física e verbal, e um homem muito doente (o quadro clínico das várias mazelas sugere uma intoxicação por chumbo, material muito usado na época em brinquedos, talheres e outros utensílios domésticos – vide RUSSEL, Martin, Os Cabelos de Beethoven. Lisboa, Temas e Debates: 2001). Estava frustrado com a sua surdez irreversível – foi ficando temeroso e paranóico à medida que esta aumentava -; foi azarado no amor (e nunca casou); e estava por vezes extremamente zangado com a vida, algo que se reflecte mesmo muito bem em várias das suas obras ou andamentos das mesmas que são frequentemente dramáticas, sofridas, melancólicas e até agressivas. Na verdade, muita da música de Beethoven, sobretudo aquela composta a partir de 1803, é complexa, difícil, rebuscada e até dura, uma verdadeira luta contra as adversidades, e contra a melodia fácil do simples entretenimento, procurando um novo estatuto do músico e da música que tivesse a atenção total do ouvinte e exigindo bastante dele e até dos próprios amadores e alunos para os quais compunha muito. Mas apesar de ser muitas vezes dolorosa, é uma música normalmente esperançosa num futuro melhor e brilhante ao qual chegamos muitas vezes no fim da obra, transformados após a viagem: a Sinfonia n.º 9 (1824) é o coroar desse conceito, quando recusa os sons dos andamentos anteriores para explodir na novidade do coro final.

Porém, Beethoven é tão conhecido que os títulos das notícias da potencial cura do cancro da mama se circunscreveram a ele deixando Ligeti de parte (não li todos, no entanto), um compositor só conhecido em certos meios e que tem coisas espantosas embora mais estranhas para o público em geral, mas cuja música faz, por exemplo, parte significativa da banda sonora do filme de Stanley Kubrick 2001, Odisseia no Espaço (1968). No entanto, o seu a seu dono. Não pode ignorar-se ou diminuir-se o autor de música que pode combater o cancro só porque Beethoven é mais famoso e mais agradável (se bem que provavelmente ele se rebelasse com a redução da sua música a “agradável”). Por isso, na foto, Gyorgy Ligeti, of course e, abaixo, a sua Atmosphères, numa interpretação de Claudio Abbado.

6 thoughts on “Ligeti, Beethoven e o Cancro da Mama

  1. Olá, gostei bastante de seu texto e análise crítica da pesquisa. Quanto à fonte da passagem de Beethoven na pensão onde morava, o que tenho realmente são apenas as histórias da professora Olga Tarlá, atualmente com 97 anos, uma pianista excepcional que teve aulas com grandes músicos nacionais e internacionais e trazia um conhecimento incrível. Suas aulas eram maravilhosas não apenas pelo seu talento musical quanto pelas viagens no tempo que nos proporcionava com as histórias que compartilhava. Abraços

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    1. Olá também Elaine, muito obrigada pelo seu feedback 🙂 Pelo que conta, a sua professora deve ter sido uma pessoa maravilhosa e uma excelente profissional. Entretanto, do que conheço de Beethoven e da sua personalidade, não acho impossível que essa situação da senhoria a bater à porta seja verdade, mas é tão interessante e divertida que acho estranho que não seja algo que se encontre com frequência em livros de história, se bem que os historiadores também filtram muitas vezes o que lhes interessa (ao contrário do que normalmente se pensa, a ciência não é de todo neutra, seja ela qual for). Talvez iniciar uma sinfonia tão intensa a propósito de algo tão banal comprometa a imagem de enorme seriedade que em geral se quer passar de Beethoven. E ele mudou frequentemente de casa quando morava em Viena por razões que desconheço, mas foram de facto mais do que o que seria normal. Voltanto à 5ª Sinfonia, vejo frequentemente citado a propósito do motivo do 1º andamento que se trata “do destino a bater à porta”. Mas também não sei exactamente de onde vem a origem dessa expressão, e por isso normalmente evito usá-la. De qualquer modo, posso contar-lhe como curiosidade, se não souber, que o ritmo desse motivo corresponde em código morse à letra V e foi por isso usado durante a 2ª Guerra Mundial pelos aliados como código para “vitória”, quando havia alguma. E envio-lhe um link para um filme óptimo da BBC sobre a estreia da Sinfonia N.3 – Eroica, a obra chave na mudança do estilo dele e que costumo mostrar aos meus alunos quando dou as aulas sobre Beethoven porque está historicamente bem enquadrado e dá-nos uma boa visão de Beethoven, da sua música e das suas opiniões (a parte final com Haydn a assistir ao final parece-me uma grande invenção, mas o que ele diz é importante e, aqui, trata-se de um filme e não de um documentário). Se não conhece, acho que vai gostar embora não tenha legendas em português, mas às vezes conseguem encontrar-se tradutores na internet: https://www.youtube.com/watch?v=mFA_tT8_v-Q Abraços também e tudo de bom na sua vida!

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      1. De fato nao ten confirmaçao dessa passagem de Beerhoven em lugar nenhum. Por isso inclusive deixei claro a dúvida da do fato. O que valeu mesmo foObrigada pela aula on line e sugestão. abçs

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  2. De fato não tem confirmação dessa passagem de Beethoven em lugar nenhum. Por isso inclusive deixei claro a dúvida na veracidade do fato. Achei interessante a associação de que se trata “do destino a bater à porta”. O que valeu mesmo foi a experiência nas aulas com uma pessoa tão sensível e talentosa. Obrigada pela aula on line e sugestão. abçs

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